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Universidade Federal de Alagoas - UFAL
 

17/10/2008
Perfil
JORNADA DO OLHAR

Prestes a ser homenageado com uma mostra de seus principais filmes, o cineasta e fotógrafo Celso Brandão rememora seu legado

Por Rafhael Barbosa

Atravessando os portões do Sítio Carababa, a 17 km do Centro de Maceió, estamos no “território” do fotógrafo, cineasta e professor Celso Brandão, 57, homem responsável pelo registro imagético que salvaguardou, em 36 filmes e em um número incontável de negativos fotográficos, a memória de artistas populares, costumes, folguedos e painéis arquitetônicos de Alagoas. A estrada de terra que dá acesso à propriedade tem o que contar. Serviu de locação para Bye Bye Brasil, considerado um dos mais importantes filmes brasileiros da década de 1970. Mais alguns metros e encontraríamos a casa usada como base para a produção de Muito Gelo e Dois Dedos D’água, longa que Daniel Filho rodou por lá em 2005. Antes, em 1982, foi a vez de Adnor Pitanga filmar a porno-chanchada Mulheres Liberadas na “casa do sítio”. Alguns dos filmes do cineasta – ele produziu mais de trinta – serão exibidos durante a semana Sesc de Cinema, no próximo dia 20 de novembro.

Carababa é sua morada há 20 anos, desde que transformou a casa de veraneio em lar permanente. Do lado de fora, completamente à vontade, Celso tomava banho de chuveiro. Ao fundo, a deslumbrante visão do mar de Ipioca. Seria necessário perguntar por que alguém se muda para um paraíso? Não, nem tão pouco questionar o interesse de tantos cineastas em filmar ali. O ambiente transpira cinema.

Alguns minutos na sacada e ele nos conduz ao escritório. “Aqui o vento está frio”, justifica. Dentro da casa de 200 metros quadrados, uma mostra dos anos dedicados à pesquisa e ao registro da cultura popular: a mobília interage com dezenas de obras espalhadas pelos cômodos. Dona Irinéia do Muquém está representada nas peças de cerâmica sob o piano. Ao lado, uma coleção de esculturas de Fernando Rodrigues, da Ilha do Ferro. Num outro canto, um leão do mestre Nuca, de Tracunhaém, exatamente onde uma moça parecia concentrada na leitura do Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro, de Lélia Coelho Frota. Logo que nos notou, ela foi apresentada: “Marília, minha esposa”, brincou Celso, para depois informar tratar-se da figurinista Marília Britto (Irma Vap), de férias em Alagoas e hospedada no sítio que já recebeu da atriz francesa Jeanne Moreau, musa de François Truffaut, a artistas brasileiros da “nova geração”, como Matheus Nachtergaele e seu amigo Michel Melamed.

Subimos ao primeiro andar. A escrivaninha estava um pequeno tumulto de livros e papéis, mas o visual dos dois “janelões” era convidativo. Mostrando-se inquieto, Celso perguntou a Marília se poderíamos usar o seu quarto para a entrevista.

“Aqui não está muito confortável”, disse. Da cozinha, ela respondeu: “Está uma bagunça... Se você tivesse avisado antes eu teria arrumado”. O ambiente é uma espécie de “suíte-escritório” e ocupa todo o andar superior da casa. Disposta sob a cômoda, uma escultura em forma de totem, obra de Agnaldo dos Santos, contribui para a “atmosfera” de antiquário. Parte dos móveis antigos, como ele conta, é herança de família. É o caso do baú com quase 100 anos que foi de sua avó, e que ele guarda como uma relíquia. Outra preferência é uma cadeira pernambucana do final do século 19 – apontando para o apoio de cabeça improvisado, Celso explica que ela foi modificada para o uso em barbearias.

Nas mais de cinco horas de conversa que teríamos, nomes, datas e referências iam e voltavam no tempo, num trajeto capaz de revelar aspectos desconhecidos de um artista cuja sensibilidade parece estar sempre à flor da pele e que devotou seu olhar ao registro dos rituais populares.

Ainda na infância, o encontro com a fotografia

Celso Brandão descreve momentos da infância com a riqueza de detalhes de quem parece recorrer com freqüência a esse período da vida. Foi lá, por volta dos 7 anos, que uma edição francesa de História da Arte, da coleção ilustrada Flamarion, chamou sua atenção para a grandeza da escultura grega. “Foi onde pude descobrir a nudez humana, e fiquei maravilhado, tanto que minha mãe percebeu e consultou o meu pai para saber se eu poderia continuar a ver aqueles livros”, recorda. Mas sua relação com a imagem já ia além da contemplação dos milhares de livros que compunham a biblioteca da família.

Ao mesmo tempo em que se debruçava sobre as ilustrações clássicas, era um assíduo freqüentador das matinês do extinto Cine Rex, onde existia um verdadeiro comércio de gibis e álbuns de figurinhas, uma outra paixão de menino.

Recuando ainda mais no tempo, ele aponta “a escola da professora Lurdinha Vieira” como um dos vetores para o desenvolvimento de seu interesse pelas artes. “Era um jardim de infância experimental, onde a ocupação quase total da gente era mexer com materiais tipo barro, tintas. Eu acho que fui fisgado aí na escola”, observa. As imagens da revista O Cruzeiro vieram depois. Nas páginas da publicação, o trabalho de historiadores, folcloristas e artistas populares ficaria impregnado no seu modo de lidar com a fotografia, uma influência que reverbera até hoje. “Uma imagem em particular me chamou muito a atenção. Era a de um historiador da fotografia que depois eu viria a conhecer, chamado Boris Kossoy”. Do trabalho de Kossoy, assim como de outros grandes fotógrafos de O Cruzeiro, Celso assimilou o tom documental que está presente em toda a sua obra. E que fotógrafo não se lembraria da primeira câmera? A dele foi uma Kodak holandesa, “muito simples”, que ganhou do pai aos 13 anos. “Meu pai era muito atento, então ele sempre nos dava o presente certo”, lembra, um pouco nostálgico, do presente de Natal trazido de uma viagem. A partir daí ele não pararia mais de fotografar.

Com a Kodak nas mãos, o passeio a Viçosa para visitar a família no fim do ano se tornou uma grande experiência. “Já no caminho, na campina, que era um local plano, no canavial, eu vi um Mateu de guerreiro e pedi para o meu pai parar o carro. Ele parou, algo que eu nem esperava, então desci e fiz duas fotos. Na cidade, fiz várias fotos da feira de Viçosa, depois no quintal da minha avó, que tinha vista para o rio Paraíba. Em Viçosa o rio era muito freqüentado porque tinha cais – ligado de um lado ao outro, era uma mini-represa que dava acesso ao meio do rio, às pedras, onde as pessoas iam lavar roupas, tomar banho, e eu gostava de fotografar tudo”.

Uma das primeiras pessoas a notar o talento do garoto foi Antonio Fon, proprietário da famosa rede de lojas de material fotográfico. “Lá no laboratório dele as minhas primeiras fotos, em preto-e-branco, foram reveladas. Ele veio falar comigo todo entusiasmado, comentando cada uma das fotos. Foi a primeira pessoa que me transferiu esse entusiasmo pela fotografia”. Quando viveu no Recife, onde cursou o ensino fundamental, Celso aproveitava os retornos esporádicos a Alagoas para exercer seu ofício. Em uma dessas viagens, decidiu que precisava conhecer seu Estado, ir além dos poucos municípios que já visitara.

Com 17 anos, ele embarcou sozinho rumo ao Sertão, para realizar aquele que seria seu primeiro ensaio fotográfico. “Tomei um ônibus às 7 da noite, foram umas 11 horas de viagem. De madrugada passamos por Mata Grande, onde eu quase desci. Fiquei muito impressionado com a arquitetura da cidade. Mas me contive e segui viagem. Chegando a Água Branca eu não acreditei no que vi, parecia uma cidade mineira, e diante da neblina que mal me deixava enxergar três metros à frente, fotografei a cidade, que também tem uma feira maravilhosa. Foi o primeiro conjunto de fotos que eu mostrei para as pessoas para sentir o que elas achavam”.

O trabalho lhe rendeu uma encomenda especial. Solange Lages, então diretora do Departamento para Assuntos Culturais (DAC), uma espécie de secretaria de cultura, deu ao fotógrafo iniciante a tarefa de viajar pelo Estado para registrar o artesanato alagoano, material que ilustraria um livro de José Maria Tenório sobre o tema. Mas a saída de Solange do cargo inviabilizou a publicação, que continua inédita até hoje. O ensaio, segundo Celso, está preservado sob os cuidados de Tenório.

Os elogios de dois artistas japoneses, o pintor Flavio Shiró e a escritora Beatrice Tanaka, convenceram seu pai a lhe dar uma nova câmera. “Eu ganhei uma Nikon e, a partir daí, comecei a fotografar com uma visão mais ágil, mais atual”. O interesse cada vez maior pela imagem pesou na decisão de prosseguir com os estudos no Recife, onde posteriormente iniciaria o curso de Arquitetura na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Eu não queria medicina, nem direito, nem engenharia. Queria um curso mais voltado para a arte”, justifica.

Mas a experiência não duraria mais de um ano. “Me desencantei com o curso, achei muito técnico, depois passei para comunicação visual. Eu cheguei até a cogitar fazer pintura na Escola de Belas Artes mas, enquanto estudava arquitetura, foram criados os cursos de Comunicação Visual e Desenho Industrial. Era uma adaptação, uma saída do curso de Belas Artes para outros mais voltados para a indústria”. No retorno a Alagoas, em 1982, Celso já havia construído uma consistente relação com o documentário, que por aquela época substituiria o afinco que até então ele só dedicava à fotografia. Com o fim do Festival do Cinema Brasileiro de Penedo e o arrefecimento da produção local, ele voltou a se dedicar ao ato fotográfico. “Durante certa época eu rejeitava minha própria fotografia. Tinha qualquer coisa que eu não gostava nela. Só depois, quando mudei para o negativo 6x7, médio formato, é que eu passei a gostar do meu trabalho”, conta. A cadeira de Fotografia no curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), que ele assumiu em 1982, proporcionou uma nova forma de se relacionar com o ofício. “Foi a primeira vez que eu realmente estudei fotografia, quando precisei ensinar. Tive de recorrer aos livros, à teoria. Até então era algo muito intuitivo”.

A nova função trouxe também uma necessidade de se abrir para a relação com as pessoas. Sempre um tanto arredio e fechado, ele agora precisava se colocar à disposição dos alunos do Curso de Arquitetura, onde começou, e depois dos de Comunicação, turma que viria a assumir algum tempo depois. Assim como os documentários Ponto das Ervas (1978), Chão de Casa (1982) e Memórias da Vida e do Trabalho (1984), que rodaram o mundo em mostras e festivais, o material fotográfico de Celso Brandão também repercutiu internacionalmente. Entre as coletivas mais importantes das quais participou está o I Mês Internacional da Fotografia Brasileira, em São Paulo, cujo tema era A Fotografia Brasileira Contemporânea, em 1992. No ano seguinte foi a vez da exposição Argueiro, Um Cisco no Olho revelar seu trabalho para os paulistanos. A Galeria Funarte, no Rio de Janeiro, também expôs algumas de suas imagens, em 1996. Atrelado à publicação na Coleção Pirelli, em 1997, o trabalho de Celso ganhou espaço no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Em 2000 foi a vez da Alemanha conhecer o trabalho do fotógrafo alagoano, na coletiva intitulada De Quem é Esta Terra (Werkstt Der Kulturen), em Berlim.

Mas mesmo com todo esse currículo, Celso Brandão guarda inédito um livro de fotografias – nunca conseguiu apoio para publicá-lo. Sic Transit (Tudo Passa) é a reunião de três ensaios temáticos organizados pelo fotógrafo e curador francês Pierre Devin. “Sic Transit é uma ópera, um ‘road movie’ nos meandros da viagem do mistério humano e de seus traços, signos de antes da emergência do ego narcísico, cujo pequeno segredo de família é o pivô. Procedimento exigente que se interroga sobre o sentido do sagrado, sobre o que liga o homem ao espaço e ao tempo, ao cosmo, aos outros homens”, escreveu Devin sobre as imagens do alagoano.

A Sedução pelas imagens em movimento

De 1975 a 1982, o Festival do Cinema Brasileiro de Penedo trouxe para Alagoas um pouco do clima experimentado nas grandes mostras competitivas mundo afora. A beleza da cidade ribeirinha alimentou comparações com a Riviera Francesa em dias de Festival de Cannes. Os ingredientes estavam lá: tínhamos as “estrelas” do cinema desfilando pelas ruas, a imprensa presente em massa e, claro, as avant-première. Tanto se disse sobre as suas oito edições que, aos ouvidos de hoje, quase tudo soa como lenda.

“Lenda ou não, o fato é que o Festival de Penedo abriu espaço para a produção local”, defende Celso Brandão, ele próprio um dos protagonistas dessa história. Logo na primeira edição da mostra, seu Reflexos, curta-metragem experimental que capturou imagens do rio São Francisco em super-8 para ritmá-las ao som da música francesa Reflets Dans L’eau, de Claude Debussy, lhe rendeu o grande prêmio do júri e também um “puxão de orelhas”do veterano Bruno Barreto, que o aconselhou a deixar de lado os estrangeirismos e usar seu talento para falar de e para sua “tribo”.

O conselho ele assumiu como um ensinamento, que até hoje reproduz para os alunos. A condução “impressionista” de Reflexos Celso traz das matinês do Cine Rex, na infância, onde viu dezenas de clássicos. “Quando fui fazer primeira comunhão eu fugia do catecismo para ir ao cinema. Uma vez gostei tanto de uma comédia americana que fiquei três sessões seguidas no Cine São Luiz e cheguei em casa de noite. Minha mãe estava preocupadíssima, dizendo que meu pai já tinha saído à minha procura e que iria me dar uma surra quando chegasse”, lembra. Mais tarde, durante a estada no Recife, as idas diárias ao Cine Coliseu também lhe permitiram conhecer o trabalho dos grandes gênios do cinema europeu. Mas Reflexos seria o primeiro e único trabalho nessa linha.

Sua “menina dos olhos” agora era o documentário brasileiro, que descobriu no I Encontro de Cineastas e Cientistas Sociais do Instituto Joaquim Nabuco, organizado por Gilberto Freyre. “Para mim foi uma luz. Saí de lá achando que era aquilo que eu poderia fazer da vida. Eu vi O Homem do Caranguejo, de José Augusto Iwersen, e os filmes do Guido Araújo sobre a Bahia. Vi uma realidade muito semelhante à nossa sendo abordada pelo cinema. Senti que aquela realidade tinha certa familiaridade com as pessoas do campo, com os artistas”. Nascia aí o documentarista Celso Brandão, mas não sem antes experimentar a ficção.

Adaptado do conto homônimo de Severino João, em 1976 o curta-metragem Semeadura repercutiu muito bem em Penedo, conquistando o prêmio de melhor ator para Beto Leão. No mesmo ano, o ritual da festa de Iemanjá pelos terreiros alagoanos foi “radiografado” em Faramim Iemanjá, documentário em super-8 dirigido, produzido e fotografado por ele. “Só de pensar em filmar a festa de Iemanjá eu ficava comovido, sabe... E filmando na Jatiúca, eu lembro que tive que parar, porque eu senti que, se continuasse mais um pouco, eu poderia me manifestar”, revela ele, que a partir daí assumiria o documentário como principal instrumento de expressão – incentivado pelo tio Théo Brandão, ele faria da cultura popular alagoana e de seus artistas o tema principal do seu trabalho. Três anos e seis filmes depois, a produção de Celso chamaria a atenção do cineasta Cacá Diegues, que o convidou para transformar um de seus trabalhos em um novo curta-metragem, dessa vez na bitola de 35mm. O escolhido foi Medicina Popular, um estudo sobre o uso das ervas medicinais do qual derivou Ponto das Ervas (1978), filme cuja produção contou com recursos da Empresa Brasileira de Cinema (Embrafilme) e trouxe a Maceió o respeitado diretor de fotografia Dib Luft.

Ponto das Ervas transfere seu foco para o curandeiro “Professor” Oliveira, que tinha em seu estabelecimento, no Mercado Público, uma espécie de farmácia e laboratório, onde guardava ervas medicinais capazes de “curar todos os males”. Entre várias exibições em mostras nacionais, o filme venceu o prêmio de melhor trilha sonora no 11º Festival de Brasília e participou do Medical Film Festival, em Nova York. Através da Estrela do Norte Produções Artísticas Ltda., criada para captar recursos junto à Embrafilme, Celso rodou os curtas-metragens em 16mm Chão de Casa (1982) e Memória da Vida e do Trabalho (1984), ambos selecionados para o Festival Internacional de Filmes Etnográficos. Até então ele já havia produzido mais de dez curtas-metragens, mas o cancelamento do Festival de Penedo, em 1985, obrigou o cineasta a mudar o perfil de sua produção, que se voltou para a realização no formato VHS, em documentários independentes como A Casa do Santo (1986), sobre as manifestações religiosas afro-brasileiras no Pontal de Coruripe, e Na Barra do Dia (ano de produção não identificado), um apanhado da produção do bordado e do filé do Pontal da Barra, de Marechal Deodoro e do Riacho Velho. Grande parte dessa produção sucumbiu devido à fragilidade do suporte, e se perdeu pelos caminhos da história.

SERVIÇO: Mostra Celso Brandão - Onde: no Sesc Centro - Quando: dia 20 de novembro, a partir das 19 horas - Entrada franca - Informações: 3326 3133.

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